quinta-feira, 10 de abril de 2014

Igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual nas escolas: o “ataque aos princípios norteadores da família”

Há três anos nos debruçamos na construção de um Plano Nacional de Educação que finalmente diga que a escola é um lugar de inclusão, de superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual. A redação proposta pelo relator foi construída com movimentos sociais, organizações da sociedade civil, entre outros grupos, ao longo desses três anos de discussão. Apesar disto, parlamentares ligados a grupos religiosos se opõem a este trecho do projeto e fazem uma suja manipulação das informações a fim de colocar a população contra esta iniciativa.

A escola não é única, ela é diversa. A escola é formada de gente branca, negra, pobre, mulheres, homens (cissexuais e transexuais), homossexuais, heterossexuais. A escola é um lugar de diversidade! As pessoas homossexuais e transsexuais existem em sua materialidade e não podem ser ignoradas no texto da lei; ignorá-las seria irresponsabilidade, insensibilidade e burrice!
A realidade é que existe o medo por parte desses grupos. Medo de uma educação de qualidade, que desconstrua a nossa cultura de violência discriminatória. Há o medo que esta educação forme uma consciência crítica, que dê às pessoas a possibilidade de uma vida com pensamento, com a possibilidade de não elegerem mais estes demagogos. Há também o medo de uma educação que ensine para as meninas que elas têm vulnerabilidade em uma sociedade machista e misógina e que a posição subalterna que elas ocupam é uma construção cultural, e não algo natural.

Enfim, mais um dia se passou. Na esperança de finalmente votarmos o Plano Nacional de Educação, nós que nos ocupamos verdadeiramente com a questão da Educação, enfrentamos mais uma extenuante sessão – ao menos dessa vez os fundamentalistas religiosos, fanáticos e suas faixas com exortações contra a “ideologia de gênero” tiveram que dividir o espaço com os coletivos de estudantes, o que serviu para contê-los um pouco; mesmo assim, num dado momento, começaram a rezar, em uníssono, o Pai Nosso; dá para crer? -. Mas infelizmente ela, a sessão, expirou antes que o plano fosse votado.
A bancada evangélica (e que fique claro que essa bancada não representa todos nem mesmo a maioria dos evangélicos desse país) apresentou um “voto em separado” por meio do deputado e pastor Paulo Freire (coitado do educador Paulo Freire, que tem o azar ser homônimo desse senhor). Nesse voto em separado, lido pelo deputado e pastor Ronaldo Fonseca, a bancada evangélica diz que a comunidade LGBT promove “ataques aos princípios norteadores da família”. Ela não exemplifica que “ataques” são esses, mas eu suponho que seja a reivindicação de um ambiente escolar que promova o bem-estar de mulheres em geral, homossexuais e transexuais e esteja livre de bullying e discriminações motivadas por homofobia, racismo e sexismo. Se essa reivindicação – justa e decorrente dos direitos políticos assegurados pela Constituição Federal – é um “ataque aos princípios norteadores da família”, é preciso se perguntar: que “princípios” são esses?
A bancada evangélica não disse a que “ataques” se refere, mas eu digo que ela, sim, ataca os princípios da Constituição Cidadã quando quer negar a existência dos diferentes arranjos ou entidades familiares – as famílias monoparentais, chefiadas só por mães ou pais solteiros; as famílias formadas por casais estéreis ou por casais que não desejam ter filhos; as famílias compostas por casais e filhos adotivos; as famílias estendidas, que nascem do divórcio; e as famílias formadas por dois homens ou duas mulheres, com filhos ou não – já reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, intérprete último da Constituição Federal e pela sociedade em geral.
O “voto em separado” da bancada evangélica também se refere a “ataques à liberdades públicas”. Não sei a que “liberdades públicas” eles se referem, mas suspeito que sejam as liberdades de oprimir e difamar minorias sexuais, étnicas e religiosas. Quem ataca as liberdades públicas é a bancada evangélica, que, no afã de impor seus dogmas e “valores” a uma sociedade plural e diversa religiosa e culturalmente, difama, em seus cultos e telecultos, as religiões de matriz africana (umbanda, candomblé e etc.), o espiritismo e seus adeptos. Ataques às liberdades acontecem quando a bancada evangélica desrespeita e insulta os ateus; defende a conversão de povos indígenas ao cristianismo por meio da exploração de sua miséria (algumas etnias denunciaram à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara a invasão de terras indígenas por igrejas evangélicas sob o pretexto da “conversão dos infiéis”); e apresenta projetos para legalizar imposturas como clínicas de “cura gay”.
O “voto em separado” da bancada evangélica não é apenas um monumento ao obscurantismo ou uma ignorância do progresso científico e material que experimentamos nos últimos dois séculos, é um exemplo da pior inserção do ponto de vista religioso na esfera pública: aquele que abre mão da reflexão e do discernimento. Na sequencia da leitura do voto, outro pastor-deputado, o tal de Eurico (cujas feições trazem os sinais de uma amargura e uma infelicidade injustificáveis em alguém que está certo de que será salvo no dia do juízo), falou como representante de toda comunidade cristã, vociferando mentiras tão deslavadas quanto aquelas que arrancam, de fiéis ingênuos, dinheiro em troca de terrenos no paraíso. Ora, esse senhor não representa toda – nem mesmo a maioria da – comunidade cristã! Ele representa apenas os fundamentalistas reacionários e fanáticos!
Num dado momento, o tal deputado-pastor Eurico apresentou o total de telefonemas contra a “ideologia de gênero” feitos à Câmara como prova de “a maioria do povo Brasileiro” estaria contra a agenda de minorias. Eu ri porque é mesmo ridículo a bancada evangélica crer que não somos capazes de inferir que esses telefonemas correspondem a uma ação orquestrada e financiada com o dinheiro (muito dinheiro!) não tributado nem fiscalizado obtido com a exploração comercial da fé de gente pobre e/ou desesperada ou desamparada. É ridículo crer que não sabemos que o enriquecimento desenfreado depende justamente da reafirmação dos preconceitos dos fiéis em relação à homossexualidade e às religiões minoritárias.
Por causa de show de horrores, o PNE não foi votado. Pior: essa bancada nos obrigou a nos concentrarmos nesse ponto, quando o plano é muito maior que isso. O PNE estabelece metas para a educação a serem cumpridas nos próximos dez anos. Entre as diretrizes estão a erradicação do analfabetismo e a universalização do atendimento escolar. O plano também destina 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação – atualmente são investidos no setor 5,3% do PIB brasileiro.
Os demais deputados que não são evangélicos, mas são conservadores (e até mesmo alguns liberais como Gabriel Chalita e Raul Henry) aproveitaram esse rebaixamento promovido pela bancada evangélica para virem com argumentos do tipo “os dois lados estão radicalizando; vou me abster”. Ora, não há “radicalização” por parte de quem trabalhou democraticamente três anos num PNE para o país. Mas há oportunismo por parte de parlamentares que passaram ao largo desse trabalho e agora querem impor sua visão de mundo estreita ao plano, com auxílio de uma claque que segura cartazes contra a “ideologia de gênero”, mas que não faz a menor ideia do que significa ideologia ou gênero.

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